quarta-feira, 5 de maio de 2010

“SOU PASTOR... E NÃO TEÓLOGO!”




Ciência e Piedade na Prática Pastoral
segundo João Wesley - José Carlos de Souza

Não é raro escutarmos afirmações como essa que escolhemos como título para essa breve reflexão. Fortemente influenciados pela tradição antiintelectualista do
avivalismo, costumamos desprezar qualquer esforço no sentido de elucidar a fé como totalmente inútil, quando não o denunciamos como perigosa especulação a nos desviar da herança uma vez entregue aos santos. Desta maneira, cultivamos um dualismo que põe em campos totalmente opostos o saber teológico e a prática pastoral. Preferimos nos apresentar mil vezes como homens e mulheres de ação, voltados, de corpo e alma, para o empenho missionário, do que como pessoas dedicadas ao estudo e à reflexão. Queremos, antes, ser reconhecidos por nossa piedade do que por nossa habilidade racional.
Por isso, muitos repetem, com orgulho indisfarçável, que mantêm distância das
“artimanhas” do pensamento teológico, pois estão empenhados nas tarefas pastorais.
Lembro-me de um caso curioso, senão melancólico, de um estudante que, mal obteve o grau de Bacharel em Teologia, se pôs a vender os livros que penosamente adquirira, alegando que, doravante, precisaria de apenas 66 deles. Não lhe ocorreu, mas ele poderia invocar o próprio Wesley para justificar o seu ato. Afinal, em mais de uma ocasião, o fundador do metodismo declarou que era homo unius libri, “homem de um só livro”. Além do mais, talvez nenhum outro líder cristão, na sua época, tenha insistido tanto, quanto Wesley o fez, na busca da santidade e da perfeição cristã.
Nesse contexto, proclamar fidelidade às Escrituras seria, sem dúvida, um gesto não somente esperado, mas valorizado grandemente. Também é bem conhecida a tríplice questão com que se costuma resumir o exame aplicado por Wesley aos pregadores: “Tens a Graça? (...) Tens os dons? (...) Tens os frutos?” Aparentemente, como se vê, nenhuma pergunta sobre as qualificações intelectuais dos pregadores é formulada.
Some-se a esses fatores, o fato de que João Wesley geralmente é lembrado como
evangelista, organizador, reformador, educador, conselheiro, guia religioso, etc.,
porém, quase nunca como teólogo. Há mesmo quem assinale que a grande
contribuição de Wesley para a história do cristianismo situa-se fora dos limites da
teologia. Ele próprio não chegou a declarar que “colocar as marcas de um metodista em suas palavras ou mesmo em opiniões de qualquer sorte” era “um grande erro”?
De fato, argumenta-se, a sua ênfase recaía sobre a vida cristã e o crescimento
espiritual e não tanto sobre a confissão da reta doutrina.
Convém, entretanto, não tirarmos conclusões apressadas. Não posso, por exemplo, deixar de dar razão a Paul Tillich quando, na introdução de sua História do Pensamento Cristão, observou: “Não há existência humana sem pensamento. O emocionalismo que prevalece na religião não é mais, e sim menos, do que pensamento e reduz a religião ao nível de uma experiência subhumana da realidade”. Nesse sentido em particular, tornar-se-ia incompreensível que um movimento da importância do metodismo, considerando a influência que exerceu e exerce até hoje, pudesse subsistir por tão longo tempo sem uma sólida elaboração teológica. É certo que Wesley não escreveu extensos manuais ou minuciosos tratados sistemáticos sobre os grandes temas cristãos. Entretanto, a sua teologia, expressa em sermões, hinos, panfletos, diários, pequenas obras e numerosos escritos, além de perfeitamente integrada à vida e missão do povo chamado metodista, buscava responder aos anseios mais profundos da sociedade inglesa, então, mergulhada num processo de rápidas transformações. Nessa linha de raciocínio, Albert C. Outler, um dos mais conhecidos historiadores do metodismo, classifica João Wesley como um teólogo da cultura “que encontrou métodos eficientes para comunicar o evangelho a audiências massivas, e se preocupou um pouco com a complexidade de suas fontes e com a significação cultural de suas mensagens evangelísticas”.
A bem da verdade, antes mesmo que as Sociedades Unidas se estruturassem, Wesley já havia se despertado para os perigos da indiferença em relação à teologia. Aliás, divergências sérias o levaram a se afastar progressivamente quer dos morávios, sob cujo influxo sentira o seu “coração aquecido”, quer de Whitefield, embora devotasse a ambos sincera amizade. Nem o quietismo e a rejeição dos meios de graça, por parte dos primeiros, nem as convicções predestinacionistas do segundo, eram compatíveis com sua visão teológica.
Mais tarde, à frente do movimento, Wesley se convenceu de que a pregação não
poderia se restringir a dar testemunhos da experiência pessoal, como usualmente
acontecia nas classes metodistas, mas envolvia o empenho para correlacionar essas experiências com a mensagem bíblica, no contexto de uma clara interpretação teológica. Tais conclusões conduziram-no a ocupar-se, de forma crescente, na preparação dos pregadores leigos. Grande parte de suas publicações tinham como endereço certo esse ministério, com destaque para os volumes de Sermões e a Biblioteca Cristã, um ambicioso projeto editorial que pretendia publicar extratos e resumos das melhores obras teológicas existentes em língua inglesa, num total de 50 volumes. No exame periódico a que eram submetidos os pregadores, a pergunta sobre os hábitos de leitura era sempre renovada. A propósito, na conferência de 1758, Wesley não escondeu a sua decepção diante do compromisso assumido, mas não inteiramente cumprido, de ler todas as “nossas obras” (na ocasião, 15 volumes de panfletos), trazendo para o diálogo comentários que julgassem oportunos. A sua observação fala por si mesma: “Não estão muitos de nós ainda carecendo de seriedade?”
É bom lembrar que Wesley era bastante severo nesse aspecto. Ele exigia que os
pregadores empregassem toda a manhã ou, pelo menos, 5 horas diárias na leitura de bons livros. Havia quem resistisse, alegando não ter esse hábito, não possuir livros ou simplesmente reivindicando atenção exclusiva à Bíblia. Com firmeza e refinada ironia, ele contestava todos esses argumentos. Aqueles que terminantemente se recusavam a ler eram aconselhados a retornarem às suas antigas ocupações. Para outros, Wesley se dispunha a doar livros até o valor de 5 libras. Aos que se desculpavam apelando para o biblicismo, ele recordava o exemplo de Paulo que, na prisão e próximo do martírio, solicitava a Timóteo para trazer “os livros, especialmente os pergaminhos”
(2Tm 4.13). Se o apóstolo agia desse modo, quanto mais os pregadores deveriam
fazê-lo. O contrário seria arrogante fanatismo: “Se não precisardes de nenhum livro senão da Bíblia, já estais mais adiantados do que São Paulo”. Então, Wesley trazia à memória o trágico exemplo de George Bell: “... ele agora não lê a Bíblia nem qualquer outra coisa”. Essa insistência tinha, na realidade, uma intenção prática. Sem o cultivo da leitura, as pregações se tornariam monótonas, superficiais e repetitivas. Wesley chegava, até mesmo, a duvidar que alguém pudesse alcançar a maturidade cristã, negligenciando esse meio como caminho eficaz para o crescimento na fé. A modo de conclusão, cabe dizer que a proposta encontrada num verso de Carlos Wesley: “Unir os dois separados há tanto tempo, / Conhecimento e piedade vital” - transformou-se, na concepção wesleyana, num verdadeiro programa para o exercício do ministério pastoral e num desafio extremamente urgente na hora atual...

Publicado em Mosaico – Apoio Pastoral. São Bernardo do Campo: Faculdade
de Teologia da Igreja Metodista – Centro de Teologia e Filosofia da UMESP,
Ano V, no 2, Maio /Junho de 1997, p. 6-7.

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